Damasco é uma narrativa complexa e anticapitalista sobre desaparecer
Nova obra de Lielson Zeni e Alexandre S. Lourenço é um experimento estético e narrativo que traduz em quadrinhos a opressão da vida cotidiana
Quantas vezes já não acordamos com a sensação de que a vida entrou no automático? Não só a rotina nos sufoca com sua previsibilidade e obrigações, mas a própria existência fica saturada com repetições de fatos, sensações, paisagens, objetos, pessoas, cheiros, telas, sentimentos. Esse sentimento de asfixia, que apequena o indivíduo, é o ponto de partida para a inquietação que vai mudar a vida do protagonista de Damasco, nova HQ de Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni, que é um dos destaques do quadrinho brasileiro este ano.
Na HQ, que saiu pela Brasa, acompanhamos Saulo, um trabalhador de uma grande empresa que vive uma rotina comum em sua baia realizando tarefas que nunca sabemos direito o que é. Tarefas repetitivas em uma dinâmica pensada para não dar margem a imprevistos: tudo é ordenado, idêntico, assustadoramente burocrático. Mas, inspirado por uma história real de um homem que decidiu desaparecer sem deixar rastros, ele começa a vislumbrar a possibilidade de sumir. E é nas ranhuras desse sistema pensado para driblar a individualidade que Saulo irá encontrar as saídas para o seu plano.
Saulo até empreende pequenas sabotagens dentro desse sistema, como quando decide mudar de posição dentro da empresa sem que ninguém perceba. Mas a pequena vingança individual, para a gigantesca máquina burocrática, tem valor quase nulo. No capitalismo contemporâneo, a própria criatividade que dá sentido ao humano é esmagada em prol da eficiência, do lucro. Nesse sentido, a luta aqui é bem mais do que apenas demarcar a própria individualidade, mas assegurar o sentido do ser (humano).
Na decisão de sumir, o protagonista abandona tudo de maneira radical. Raquel, sua namorada, acabará sendo testemunha solitária de sua existência anterior. Eles compartilharam juntos uma bonita história de amor e sonhos que ficaram pra trás. Saulo a conheceu durante o show de sua banda e se apaixonaram. Mudar de vida, largar o emprego, tentar viver de música parecem mudanças de rota menos radicais e um tanto óbvias, mas à medida em que avançamos na leitura fica claro que essa retomada em algum momento se reintegraria ao sistema que o aprisionava.
É por conta dessa subtrama do casal – e do seu fim – que Damasco assume um tom melancólico e dilacerante, sobretudo pelo fato de que Zeni e Lourenço oscilam entre esses dois pontos de vista, colocando Raquel quase como uma protagonista da história.
A HQ carrega um argumento anticapitalista, mas traz uma jornada pessoal tão difícil e tão bem contada que nos conecta de uma maneira impressionante. O trabalho de Alexandre S. Lourenço continua explorando as diferentes possibilidades da narrativa do quadrinho, como já fez em trabalhos como Robô Esmaga e o ótimo Você é Um Babaca, Bernardo. Páginas com quadros pequenos e simétricos convivem com várias passagens sem requadros, várias páginas com muito espaço em branco, páginas com uma única palavra ou um desenho solitário, o uso do preto e amarelo como contraste e muitas repetições para dar conta da burocracia sufocante.
É bem interessante como o quadrinho esquadrinha o ambiente para reduzir os objetos ao seu significado primordial. É como se Saulo, na sua fuga, tentasse retirar dos objetos o seu significado mais subjetivo e pessoal. Utensílios de cozinha, um controle-remoto, jogo de tabuleiro. Crachá. Coisas. Ao final, até os livros se vão. Em uma linda passagem da HQ, parte da história é lida através das lombadas das obras empilhadas que, aos poucos, vão sumindo.
O quadrinho também convida a uma leitura mais complexa, pois traz chaves que acessam a história bíblica de Saulo – que se tornaria são Paulo, nome importante do Cristianismo – em sua jornada de conversão até a cidade síria de Damasco (daí o nome da obra). A HQ faz pontes com a Damasco de hoje, arruinada e envolta em guerras.
Damasco é uma HQ sobre essa fuga, mas o modo como a trama é construída traz reflexões que deixa o leitor cada vez mais intrincado e imerso nessa crítica ao sistema, de modo que acabamos divagando sobre o nosso próprio sumiço. E se largássemos tudo? Parece uma impossibilidade tão grande, tudo está tão entrelaçado, previsto, envolve tantas pessoas, locais, soa impossível. Mas, será…?
Por: Paulo Floro
Fonte: Revista O Grito