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É bom discutir o mercado de quadrinho, mas quem discute o fazer quadrinho?

Não é de hoje que questões relevantes relacionadas ao mercado brasileiro de HQs estão na boca do povo. Ramon Vitral, do Vitralizado, há anos alertava para o perigo Amazon e a possibilidade de monopolização na venda de livros – algo que se concretizou, vide o fechamento de redes de livrarias concorrentes e a consolidação dessa loja como a principal forma de distribuição de gibi em âmbito nacional.

Para além das finanças, o jornalista e tradutor Érico Assis, ano passado, em sua finada coluna no Omelete, trouxe a formação de leitores ao centro da discussão: “Tenho uma crença praticamente religiosa de que a pessoa que não lê é a pessoa que ainda não descobriu o que gosta de ler. Que quem não lê quadrinhos ou diz que não gosta de quadrinhos só não leu o quadrinho certo. Dizer que você não gosta de ler é como dizer que você não gosta de música, de cinema, de comida, de pessoas. São muitas opções para não ter nada nem ninguém que agrade”.

A questão, de fato, é complexa: os números sobre leitura em nosso país são assustadores. No também finado Twitter, Érico propôs o aumento da quantidade de bibliotecas públicas, especialmente em cidades pequenas: “O que falta no Brasil é estímulo à leitura. Então: bibliotecas. Formando leitores vai ter demanda de livros”. Temos um déficit na acessibilidade a livros – e aí voltamos ao aspecto mercadológico da coisa.
o mercado nacional de gibi, por mais caótico que seja (e ele parece sempre mergulhado nessa condição por inúmeros motivos), está sendo discutido em diversos espaços, o que é bom. Questões sobre diversidade e representatividade também são abordadas de forma efetiva. Agora, falta conversar sobre um aspecto pouco lembrado: o fazer gibi.

A impressão é de que muita gente quer os louros de trabalhar com arte (visibilidade, reconhecimento, elogios) sem se preocupar em estar em contato com o lado “chato” da profissão (estudar, trocar ideias, aperfeiçoar o ofício, reconhecer estar num caminho errado para mudar de rota). E isso vale para os vários players do setor: artistas, editores, imprensa especializada, pesquisadores, organizadores e curadores de eventos. Mas vamos por partes.

Talvez o tipo de evento mais visto em nossa cena sejam os bate-papos com autores quando do lançamento de obras. No entanto, nesse formato, o escopo acaba ficando reduzido por dois fatores. Primeiro: geralmente é apenas uma pessoa (o artista) comentando as dificuldades e os prazeres relacionados àquele trabalho específico. Segundo: o público até interage, mas como tais encontros são realizados assim que o livro fica disponível, pouca gente o leu para querer saber mais a respeito das escolhas narrativas, da construção de uma cena marcante. O resultado? A conversa gira em torno do tema da HQ, da importância daquele assunto para criador, leitor e sociedade como um todo – algo provavelmente já citado em entrevistas anteriores ao lançamento ou na divulgação do livro.

Painéis em feiras conseguem reunir mais quadrinistas ao mesmo tempo no palco. Ver a programação de uma Bienal de Quadrinhos de Curitiba é um alento, com diversas abordagens sob diversas perspectivas. Ainda assim, falta muito. Já superamos a mesa-redonda “Mulheres e quadrinhos”, que denotava não só machismo por parte da organização de um evento, como também desconhecimento da cena na qual se está inserido. Porém, seguimos criando guetos, onde se colam etiquetas em pessoas. Artista queer só está autorizado a falar da experiência queer nos quadrinhos? Artista negro pode apenas responder a questões sobre identidade racial nessa mídia?

Como comentei, o quadrinho nacional, pelo menos o independente, conta com pilares sólidos o suficiente para ser reconhecido como plural e diverso. Nossa cena é protagonizada por mulheres, gays, lésbicas, trans, indígenas – inclusive, o quadrinista brasileiro mais premiado é um negro, oriundo da periferia de São Paulo. Marcar posição é importante, mas está na hora de os eventos incluírem mais temas relacionados ao processo criativo, assim como organizar encontros próprios para isso. Lá fora a ideia virou uma constante: a programação da Toronto Comics Arts Festival deste ano, principal feira de gibi do Canadá, misturou com maestria a representatividade aos assuntos práticos, de valia para a rotina de qualquer artista, sem deixar pautas progressistas isoladas num mundo à parte.

Como pensar a página? Quem são as influências dos criadores e como essa influência é usada? Como construir uma linguagem visual particular, a qual será reconhecida pelo público? Quais as diferenças entre trabalhar com preto e branco e com cores? É possível inovar dentro dos limites dos gêneros? Como usar metalinguagem sem parecer cafona? Sem contar o âmbito escolar ou acadêmico, essas coisas basilares pouco estão presentes em nossa cena. São infindáveis pontos a serem debatidos com maior profundidade, com o intuito de enriquecer o conhecimento de todos os elos da cadeia, incluindo leitores.

Como lembrou Filipe Lima, meu parceiro no podcast Krazy Kazt, uma das marcas da CCXP eram as masterclasses, verdadeiras aulas com astros estrangeiros a respeito do ofício de quadrinista.

Mark Waid explicou suas técnicas para escrever roteiro; Simon Bisley deu dicas de pintura; Eduardo Risso, de narrativa etc. Por que quase nunca se aplicou a ideia a artistas brasileiros, tanto ali como em outros lugares? Ao considerar que somente estrelas internacionais têm capacidade para analisar tais conceitos, curadores contribuem para o estado de coisas.

A imprensa especializada também tem muita culpa. Com exceções pontuais, jornalistas, influencers e afins pouco se debruçam de verdade sobre as obras. A resenha média pincela o tema, comenta sua relevância social, decreta se o desenho é “diferente”. Onde estão as entrevistas que mergulham no que o quadrinista quis fazer? Cadê os vídeos nacionais como os do Cartoonist Kayfabe, destrinchando o que está no papel e, principalmente, como aquilo funciona para a história? A análise temática de uma HQ, ou então a de intenções, tem seu espaço, mas não pode ser usada para tudo. Do contrário, quadrinho ruim sempre será louvado por elementos secundários: amizade, abordar assuntos edificantes etc. – e a evolução da cena passa por considerar ruim um quadrinho que, de fato, seja ruim.

E esse tipo de conversa se faz mais necessária ainda em círculos privados. Seja no WhatsApp, redes sociais, mesa de bar, cadê os artistas discutindo o uso de técnicas de desenho? As soluções visuais possíveis para determinada cena? Os criadores que impactam sua visão de mundo – e os motivos para isso? A opinião sobre a HQ do momento? Se um amigo apresenta um trabalho fraco, alguém mandará a real pra pessoa ou dará tapinha nas costas, sem qualquer senso crítico?

Uma parte considerável dos quadrinistas brasileiros, especialmente os mais jovens, adora se autointitular “nerd”, ainda mais quando for pra vestir camiseta de herói ou engajar num assunto da moda; ser nerd no sentido original do termo (gostar de estudar) dá muito trabalho.

Todos esses assuntos parecem desconexos, mas não são. É um único círculo virtuoso: espaços para debater arte farão com que artistas estejam mais bem preparados; artistas mais bem preparados farão obras melhores; obras melhores farão com que a imprensa eleve o nível da análise; imprensa com nível de análise mais alto fará com que artistas cobrem por mais espaços para debater arte; e assim indefinidamente. Talvez passe por aí, também, o aumento de leitores de quadrinhos no Brasil.

 

Por: Thiago Borges
Fonte: O Quadro e o Risco

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