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Todo fim de ano um engarrafatarse

Todo mundo que acompanha o quadrinho brasileiro sabe que o Catarse é a grande feira da HQ nacional. Não uma loja; uma feira. A plataforma online de financiamento coletivo, que tem pouco mais de dez anos, foi adotada por vários tipos de feirantes, desde o artista independente no primeiro trabalho à editora grande que quer conversar com as bases. Virou vitrine da HQ brasileira.

Todo mundo que acompanha o quadrinho brasileiro também sabe que fim de ano é época de engarrafatarse. É o período em que todo mundo quer lançar seu projeto de financiamento coletivo. Tem a ver com as feiras não virtuais, como a CCXP em dezembro – para o quadrinista chegar lá com uma grana de apoio. Também tem a ver com um pouco de desorganização: você tem que fazer o projeto naquele ano, mas deixa para última hora.

 

Depois de alguns anos de engarrafatarses, também se comenta que, por causa do acúmulo de projetos no final do ano, fica mais difícil financiar um quadrinho no Catarse nesse período. A concorrência, afinal, é maior. É isso mesmo?

Eu mesmo estou promovendo uma campanha de financiamento coletivo no Catarse neste exato momento (Balões de Pensamento 2! Já apoiou?). Acompanho outras campanhas que estão penando para bater suas metas neste final de 2022. Não é o caso de todas – tem algumas que voam –, mas a impressão é de que a concorrência contribui para o que eu estou chamando de sufocatarse. Eu também estou no sufoco.

Mas eu queria saber da realidade dos números. Fui atrás do próprio Catarse. Conversei com Leandro Saioneti, analista de projetos de jogos e HQs da plataforma. Falei que queria saber mais desses acúmulos de projetos no final do ano, pedi alguns números brutos e ele mandou.

Confirmei que:

1 – O engarrafamento de projetos de quadrinhos no Catarse no fim do ano é real; mas é menor do eu supunha.

E descobri que:

2 – A taxa de sucesso de projetos no fim do ano é praticamente a mesma do resto do ano. Ou seja, o número de projetos sobe, mas a quantidade de projetos que bate a meta se mantém. Às vezes até sobe.

3 – Tem épocas piores no ano para se tentar financiamento do projeto.

Também confirmei que a pandemia mexeu com o Catarse. E complicou minhas contas.

Antes de chegar nas minhas conclusões, alguns números de contexto. O Catarse começou a funcionar em fevereiro de 2011, há quase doze anos. Teve um crescimento aos saltos: passou de 276 para 546 projetos do primeiro para o segundo ano, mais do que dobrou este número no ano seguinte e bateu 7167 projetos em 2017 (veja no Gráfico 1). Entre 2018 e 2021, ficou entre os 5000 e 6000 projetos por ano. Isto, claro, no total – projetos de quadrinhos, literatura, educação, esportes, jornalismo, jogos, gastronomia, fotografia, socioambientais etc.

O pessoal dos gibis descobriu a plataforma lá no início, em 2011, mas bem tímidos: foram só dois projetos naquele primeiro ano de Catarse. O primeirão que deu certo foi Achados e Perdidos, de Eduardo Damasceno e Luis Felipe Garrocho.

O crescimento também aconteceu aos pulos: 16 projetos de HQ no segundo ano, 58 no terceiro, 62 no quarto, 137 em 2015 e mais de 400 em 2019 (veja no Gráfico 2). O primeiro ano da pandemia, de 2020, foi o único de queda: 344 projetos. No ano passado, o crescimento retomou, com 511 projetos. Este ano, considerando apenas nove meses e meio, já teve 523 projetos de financiamento coletivo de HQ. Outro recorde.

Quadrinhos já chegaram a representar 20% da plataforma em termos de número de projetos. Hoje ficam na faixa dos 8% e, na média geral dos 11 anos de existência do Catarse, 6%. (Isto, claro, em número de projetos, não em números de faturamento.) É bom lembrar que o Catarse está longe, bem longe, de ser uma feira só de quadrinistas ou editoras de quadrinhos.

 

Qual é a época do engarrafatarse, o período do ano em que o Catarse tem mais projetos de quadrinhos? O senso comum está certo: outubro e novembro costumam ser os meses em que mais campanhas terminam. Quando a pandemia não atrapalha as contas, ao menos.

Por que não dezembro? Porque dezembro é o mês em que o criador do projeto precisa estar com o dinheiro no bolso e/ou com o material pronto para levar à CCXP e outros eventos. Você tem que conseguir o financiamento antes de dezembro.

Em 2018 e 2019, por exemplo, o número de projetos de quadrinhos no Catarse ficou entre 10 e 30 entre janeiro e setembro. Em outubro e novembro, o número pulou para 60 a 70 (veja o Gráfico 3 – que considera o mês de encerramento de cada campanha). Um terço de todos os projetos do ano teve fechamento concentrado em dois meses.

Em 2020, o ano sem eventos presenciais, o número total de projetos caiu e a tendência mudou um pouco: os meses com maior número de projetos foram novembro (11% de todos os projetos do ano) e dezembro (13%). Foi um ano atípico.

No ano passado, ainda sem CCXP presencial nem outros eventos de porte, também houve uma concentração de projetos em dezembro (12%). E foi um ano de recorde: o Catarse superou os 500 projetos de quadrinhos.

Em 2022, até o momento, continuamos em pandemia e os números estão esquisitos. No mês de setembro, o Catarse superou o recorde de projetos de quadrinhos de todo o ano passado, e a distribuição de projetos por mês está mais igualitária.

E uma curiosidade: o número geral de projetos no Catarse caiu em 2021 e 2022, enquanto o de quadrinhos aumentou (veja no Gráfico 1). Ou a crise econômica diminuiu as esperanças de menos quadrinistas do que do pessoal de literatura, jogos, gastronomia, fotografia, esportes etc., ou projetos de quadrinhos têm metas mais comedidas. Ou tem outro fator que eu não sei avaliar.

 

A época do ano afeta as chances de um projeto de quadrinhos bater a meta no Catarse? Sim. Mas a pior época não é o engarrafatarse. É o início do ano, quando a feira tem pouca gente.

Na média dos últimos cinco anos (setembro de 2017 a setembro de 2022), a média de sucesso de projetos de quadrinhos no Catarse é de 42%. Dois em cada cinco projetos atingem ou superam a meta.

(Importante: estou considerando “sucesso” como atingir os 100% da meta que o projeto define. Há campanhas flex, que geram quadrinhos mesmo quando não se atinge os 100%. Nos meus cálculos, não fiz a diferenciação entre campanhas flex ou tudo-ou-nada.)

Em janeiro e fevereiro, esta taxa de sucesso já caiu até 10% – em janeiro de 2018, quando um único projeto foi financiado entre dez. Entre 2018 e 2020, a média de sucesso das campanhas de janeiro e fevereiro ficou entre os 10 e os 24% – bastante baixa.

Nos últimos dois pares de janeiro-fevereiro, em 2021 e 2022, a taxa de sucesso ficou perto da média do ano – entre 40 e até 57%. Mas a pandemia e a falta de eventos, mais uma vez, complicam as contas.

A melhor época para fazer projetos? Os meses do meio do ano costumam ter menos projetos e mais taxas de sucesso. Em maio de 2018, março de 2019 e junho de 2020, mais de metade dos projetos bateram a meta. No ano passado, entre julho e setembro, dois em cada três projetos bateram a meta.

E no engarrafatarse? O número de projetos aumenta, mas a taxa de sucesso se mantém ou aumenta. Nos meses de outubro e novembro de 2018, 2019, 2020 e 2021, metade dos projetos atingiu a meta.

Era de se esperar que, com mais projetos, o número dos que dão certo fosse cair. Mas não. No final do ano, a grande feira do Catarse tem muitos feirantes, mas também tem muitos clientes. Ou o mesmo número de clientes gastando mais. Ou as duas coisas.

E quando há pouca oferta, no início do ano, há poucos clientes. O Catarse segue a regra da maior parte do comércio: o começo de ano é fraco, o fim de ano é bom.

 

Os dados que eu levantei só dizem respeito a número de campanhas e atingimento de meta. Não levam em conta o valor que cada campanha estabelece de meta, se são projetos de autores de renome ou não, se são projetos de editoras ou não, se são editoras pequenas ou grandes, nem o engajamento que cada campanha consegue gerar (ou não). Nem, como já disse acima, a diferença entre o que é sucesso numa campanha flex e numa campanha tudo-ou-nada.

Uma campanha com meta de 10 mil reais é diferente da campanha que quer 100 mil. A campanha organizada pela editora Seguinte ou pela Todavia (cada uma fez um projeto) tem recursos e expertise diferentes da organizada pela Draco (42 projetos) ou pela Figura (20 projetos). Assim como a campanha de um Caetano Cury (4 projetos) ou de uma Cartumante (3 projetos, incluindo um de assinatura) já parte de uma base de apoiadores diferente da de quem está começando a carreira.

Ainda há discrepâncias aí no meio, como campanhas que definem metas muito baixas – que sabidamente não pagam os custos de produção da HQ – para propagandear o atingimento rápido da meta ou só para estar na feira Catarse. Tem campanhas que os criadores apenas soltam na plataforma e não divulgam. E também não levei em consideração as campanhas de assinatura, em que você paga mensalmente a um autor. Há autores que têm público de assinatura para financiar campanhas pontuais – e os números que citei acima tratam apenas de campanhas pontuais.

Tudo isso influencia o resultado das campanhas. São fatores qualitativos, que mereciam uma pesquisa bem maior para saber o quanto influem.

Mais de dois terços (521 apoiadores) dizem ter tido problemas com editoras via Catarse. Porém, conforme veremos, isso não se aplica a todas editoras. pic.twitter.com/bKVrofwQgz

— Linck vs. The People (Quadrinhos na Sarjeta) (@linck_alexandre) August 27, 2022

Outro fator que é impossível deixar de lado quando se trata do Catarse é o das campanhas que não cumprem o prometido. Este ano foi atravessado por críticas de leitores a projetos das editoras SkriptGraphite e Red Dragon, entre outras, por atrasos, cancelamentos e outros problemas de entrega. O crítico Alexandre Linck fez uma pesquisa sobre o assunto, publicada aqui.

Sendo apenas o espaço da feira, o Catarse não se responsabiliza pelo que está na banquinha de cada feirante. A plataforma cede o espaço e o que passa por ela é a compra – o dinheiro, do qual ela fica com um percentual – no caminho entre comprador e editora ou autor. O resto da relação fica entre estes dois polos.

É o que diz a declaração que o Catarse emitiu há algumas semanas, justamente relativa a estas reclamações. No comunicado à imprensa, o Catarse ressaltou que não faz curadoria dos projetos que abriga nem é uma loja, e que torna a plataforma livre para quem quiser usá-la como “espaço de conexão”. Dentro desta ideia, o Catarse não se envolve no cumprimento da promessa que a editora ou o autor fez aos apoiadores.

O comunicado ainda cita uma pesquisa feita pela plataforma junto ao Benfeitoria – outro site de financiamento coletivo – que apurou que 92% dos projetos conseguem entregar tudo que prometem. A pesquisa, porém, foi feita entre criadores de projetos e não entre apoiadores.

Mesmo considerando que a taxa de insatisfação seja de 8%, este valor baixo  já prejudica a imagem do Catarse, do financiamento coletivo como um todo e a confiança geral de quem quer apoiar um projeto. O Catarse, evidentemente, diz que quer zerar esse número. No caso de campanhas ou criadores que repetidamente não cumprem o prometido, a plataforma pode abrir os dados privados de editora ou autor para o apoiador lesado começar um processo judicial. O Catarse também pode impedir aquela editora ou autor de seguir com uma campanha no ar ou de abrir novas.

O último caso aconteceu recentemente com a editora Graphite, efetivamente banida da plataforma por período não divulgado.

 

O Catarse teve recordes imponentes com quadrinhos nos últimos dois anos. Em 2021, Confinada, de Leandro Assis e Triscila Oliveira com a editora Todavia, arrecadou R$ 615 mil (891% da meta) de 7800 apoiadores e De Onde Viemosde Carlos Ruas, arrecadou R$ 590 mil (841% da meta) entre 6400 apoios. Curiosamente, os dois projetos encerraram a campanha em outubro, mês de engarrafatarse. Arlindode Ilustralu (via Editora Seguinte) chegou perto dos R$ 400 mil, ou 455% da meta.

Este ano, a editora Figura conseguiu levantar mais de R$ 100 mil em menos de um dia com a Coleção Toppi – volumes 1 e 2Little Nemoda mesma editora, bateu na semana passada a maior meta que o Catarse já teve em um projeto de quadrinhos, R$ 180 mil, e segue arrecadando apoios até a semana que vem.

De outro lado, Brega Storyde Gidalti Jr., um dos quadrinhos brasileiros mais comentados da história recente – e de um autor já premiado – só levantou pouco mais de R$ 20 mil na plataforma. Meta 2a continuação de uma HQ também premiada com o Jabuti, ainda não atingiu a meta (o trocadilho é triste). Juliana Fiorese, artista que já financiou outros sete projetos no Catarse, ainda não conseguiu movimentação com seu último, Fragmentos (in)Conscientes. Outro projeto em que eu mesmo estou envolvido, Novembro 2graphic novel de Matt Fraction e Elsa Charretier, dois nomes fortes da HQ norte-americana, ainda não decolou.

Neste momento, há 36 projetos de financiamento coletivo de quadrinhos no Catarse que a plataforma classifica como “reta final”: até o fim do mês. Doze já superaram a meta, o que dá um em cada três. Segundo os números do Catarse no mês de outubro dos últimos cinco anos, seis destes projetos que ainda não bateram a meta vão chegar lá até o fim do mês. Dezoito, não.

A situação econômica atrapalha muito quem está procurando apoiadores. Com inflação e desemprego, é difícil ter grana sobrando para apoiar projetos de Catarse. A situação política, que é motivo de quase toda a discussão atual no país (com razão) também não colabora. O engarrafatarse está aí.

 

Por: Érico Assis
Fonte: Omelete

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