Barrela e o limite das relações humanas
Barrela (Brasa Editora) é mais novo trabalho de João Pinheiro. Trata-se da adaptação da primeira peça de Plinio Marcos. O quadrinho possui o teor popular e humano dos outros trabalhos que Pinheiro tem desenvolvido durante sua carreira, em uma obra que enriqueceu o material original.
A história se passa durante uma noite dentro da prisão. Os personagens Portuga, Bereco, Bahia, Tirica, Fumaça, Louco e Garoto desenvolvem toda a narrativa no cenário único que é a cela. A trama gira em torno de tragédias e traumas humanos decorrentes do convívio extremo em que a miséria impõe às pessoas.
No início da narrativa, temos Portuga gritando de susto e acordando os outros presos logo após um pesadelo. O incidente faz com que os demais se revoltem e comecem a zombar da traição que Portuga recebeu de sua antiga esposa. Tirica é o personagem que mais o provoca, incitando Portuga a revelar uma história ainda mais humilhante sobre o companheiro de cela. A partir desse ponto, a narrativa se concentra na exploração da história traumática de Tirica.
O que chama atenção no texto original e na adaptação do João Pinheiro é a forma crua em que as relações humanas são tratadas nas últimas consequências dentro de um cenário de extrema violência e humilhação. São evidenciadas as relações hierárquicas e morais dentro da prisão envolvendo sexualidade, força, humilhação e o conflito disso tudo com a autopreservação. Milhares de outras obras já abordaram as relações humanas dentro do encarceramento, mas poucas tão fundo e de forma tão crua na miséria humana.
É possível estabelecer um paralelo com a obra Escritos da Casa Morta de Fiodor Dostoievski, que também se passa dentro de uma prisão. Nela, em certo capítulo, o escritor russo relatará uma peça de teatro montada pelos presos e descreverá como tal fato reavivou os ânimos e causou uma mudança moral nos homens, mesmo que momentaneamente.
Dostoievski cita que na pobreza ainda existe alguma dignidade, já na miséria não há nada. Na obra de Marcos/Pinheiro percebemos que os presos são apenas jogados ali por uma circunstância e um peso do mundo que não possibilita sequer cogitar qualquer respiro moral. Ou seja, a situação que vemos em Barrela é o contexto para se ver o que existe de pior na natureza humana.
Plinio Marcos não alivia em nenhum personagem. O Louco, por exemplo, se revela um maníaco sexual que incita incessantemente esse tipo de violência entre os presos por uma diversão sádica e um prazer desconhecido.
O interessante é perceber como tanto na obra de Dostoievski quanto na de Plinio Marcos, vemos pessoas na prisão em situações extremas. Nas obras de Marcos/Pinheiro não vemos nenhuma chance de remissão quanto aos pecados cometidos pelos presos, não tendo em hipótese alguma uma chance de mudança. Os pecados, os traumas e os erros dos presos são sempre explicitados e testados, fazendo com que a obra de Marcos seja mais visceral que a de Dostoievski.
João Pinheiro novamente aborda temas pesados, relatando o cotidiano deplorável de uma parte ignorada da sociedade. Portanto, Pinheiro sabe muito bem onde está pisando no desenvolvimento da história como narrativa gráfica. A tensão criada pelas páginas, pelo traço pesado e pela ausência de cores estabelece o clima ideal para esta história completamente desesperançosa. É perceptível que o autor entende as nuances desse tipo de relação, que é tão presente em parte da nossa literatura.
Barrela é um quadrinho assustador, a maneira explícita em que a vida real é colocada pode chocar e ao mesmo tempo apresentar um pouco melhor a verdade das relações violentas do cotidiano. João Pinheiro, em sua experiência, soube criar o diálogo perfeito entre ilustração e texto em uma adaptação impecável da obra. O clima aterrador do texto é idealmente transposto em desenho que por si só mostra a derrocada da humanidade em relações sufocantes. Se você procura ter contato com uma obra que ilustre a condição humana sob o limite da humilhação e da violência, Barrela será a melhor retratação em quadrinhos nacional dentro do tema.
Da Redação
Fonte: Quadrinheiros