“Chumbo”, de Matthias Lehmann, traz panorama político e pessoal sobre a ditadura militar
A obra do autor franco-brasileiro traz uma saga familiar que nos ajuda a compreender os impactos sociais e afetivos causados pelo golpe militar
Nos 60 anos da ditadura militar, um dos períodos mais sombrios da história brasileira, a HQ Chumbo (que sai pela Nemo), do autor franco-brasileiro Matthias Lehmann torna-se um dos principais eventos editoriais para lembrar a data. O livro apresenta a saga da família Wallace desde os momentos que antecedem o golpe até a saída dos militares, já na redemocratização.
A história de dois protagonistas irmãos, Severino e Ramires, bem diferentes entre si, nos dão chaves para entender a história política no Brasil na segunda metade do século passado. O primeiro, sensível e ligado às artes, acabará se dedicando ao jornalismo e a literatura e, mais tarde, será preso e torturado pelo seu engajamento com a luta armada. Já o último, mais extrovertido e canastrão, abraçará a causa dos militares e fará uma defesa do autoritarismo e da violência, sobretudo no período de maior repressão, entre 1968 e 1974, os tais “anos de chumbo”.
É nesse panorama generoso que reside a maior força de Chumbo, uma obra de fôlego, que usa a história política brasileira como parte essencial da narrativa. Os personagens, fatos e cenários políticos reais aparecem, simultaneamente, como pano de fundo para a saga familiar e também como primeiro plano da HQ, uma escolha narrativa que faz um uso inteligente da própria linguagem do quadrinho para dar coesão a essas duas facetas.
Acompanhamos a ditadura por quem a viveu por dentro, em diferentes escalas e perspectivas. Com leve inspiração autobiográfica, Lehmann nos coloca em contato com a história dos irmãos, desde a infância no interior de Minas Gerais, acompanhando o pai empresário de mineração, até a velhice, em Belo Horizonte. Há ainda um elenco interessante de personagens, como Maria Augusta, a mãe frustrada que sonhava em ser escritora, a irmã beata Adélia, e as caçulas Úrsula e Berenice.
Severino e Ramires são diferentes em quase tudo, mas o seu antagonismo é complexo como são as relações reais entre irmãos. Há tempo suficiente para nos conectarmos com as histórias de ambos e nos envolvermos com seus defeitos e qualidades em um processo de construção de personagem cheio de camadas e nuances. Severino, com seu ar taciturno e reservado, cheio de dificuldades de relacionamento e com um idealismo que se confronta com seu narcisismo. Já Ramires, galante e extrovertido, busca resolver tudo na violência, abraça a causa dos militares, mas no fundo esconde a própria bissexualidade até o fim da vida. No meio deles está Iara Rebendoleng, uma jovem filha de um sindicalista que se colocou contrário ao patriarca dos Wallace.
Esse tempo maior para desenvolver a história ajudou a imersão nessa família, que acaba sendo o molde para uma reflexão dessa sociedade em que vivemos, pós-redemocratização. O autor fez um excelente trabalho de pesquisa e não deixou escapar praticamente nada nesse gigantesco painel político, como as questões de classe e raça que pavimentaram o caminho para a chegada dos militares, o legado do movimento estudantil e até mesmo a relação problemática da sociedade com os militares após a anistia.
Mas Chumbo não é um livro essencialmente histórico, ainda que o autor tenha se apoiado em pesquisas e obras importantes para compor o roteiro. As datas, os principais fatos e o modo como esses acontecimentos reverberaram junto à população estão bem documentados, inclusive trazendo à tona muito da memória coletiva do Brasil. Capas de jornais históricas, telejornais, fotografias, cartazes e outras memorabilias pop são incorporadas à narrativa, que faz uso, ainda, de influências ligadas ao design e publicidade brasileiros.
Há também muita referências e citações à cultura brasileira, como quadros de Portinari e Guignard pendurados na parede, discos de João Vale, cadeiras de Lina Bo Bardi e até uma aparição de Clara Nunes em uma cena bem bonita e emotiva. É também um livro-homenagem a Belo Horizonte, com a cidade retratada tanto em suas paisagens quanto personalidade. O viaduto Santa Tereza, a Livraria Ouvidor, a Pampulha, bem como a vida boêmia, tudo está bem retratado em Chumbo.
O estilo de desenho de Matthias Lehmann, entre o cartunesco e o realista, ajuda na aproximação a esses personagens, criando uma forte afetividade. E convive bem com painéis enormes, de página dupla, com riqueza de detalhes, retratando momentos históricos, como a cerimônia no Automóvel Clube do Brasil, em 30 de março de 1964, antessala do golpe, detalhes da guerrilha do Jequitinhonha e a passeata das Diretas Já. É uma narrativa ágil, viciante na leitura e de forte sensibilidade no modo como desenvolve a trama, mas sem nunca abrir mão da dureza e do horror do período. As cenas de tortura, contada em riqueza de detalhes, são perturbadoras de ler.
Nascido na França, filho de mãe brasileira e pai francês, Matthias Lehmann se inspirou levemente em sua própria família, como explica no posfácio do livro. Ele é sobrinho de Roberto Drummond, autor de Hilda Furacão, que também se engajou na luta contra a ditadura (ainda que não tenha entrado na luta armada). Autor de várias HQs desde o início dos anos 2000, como La Favorite (2015), Le Gumbo de l’Année (2002), L’Étouffeur de la RN115 ( 2006), entre outros, este é seu primeiro trabalho lançado no Brasil.
Chumbo é certamente um dos mais imponentes trabalhos artísticos já feitos sobre a ditadura militar e um dos mais amplos, tanto do ponto de vista da pesquisa histórica quanto da reflexão sobre os impactos do período em nossa vida ainda hoje.
Por: Paulo Floro
Fonte: Revista O Grito