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HQ Ópera Negra retrata busca por Maria D’Apparecida, estrela negra que o Brasil esqueceu

Obra da artista franco-brasileira Clara Chotil apresenta a incrível história da cantora lírica que cantou na Ópera de Paris, mas que morreu solitária em 2017

O caso de Maria D’Apparecida, infelizmente, é recorrente no Brasil. Um artista brasileiro se destaca em uma determinada área, ganha projeção internacional, sucesso de público e crítica, reconhecimento entre os pares, mas acaba caindo no ostracismo. Muitos vezes seu legado é apagado ou fica inacessível às pessoas. Esse esquecimento é ainda mais evidenciado pelo verniz do racismo, e com isso a dificuldade que a cena cultural ainda tem de reconhecer os pioneirismos dos artistas negros.

Maria D’Apparecida preenche todas essas caixinhas de injustiça e esquecimento. Agora, sua história recebe o merecido tratamento nesta HQ da quadrinista franco-brasileira Clara Chotil, Ópera Negra, que chega ao Brasil pela Veneta. Mas quem foi Maria D’Apparecida? Você sabe?

Filha de uma empregada doméstica que foi engravidada pelo filho do patrão e órfã aos oito anos de idade, Maria D’Apparecida foi uma cantora lírica que fez carreira na França a partir do início dos anos 1960. Ela teve uma das carreiras mais brilhantes em seu tempo e chegou a interpretar Carmen de Bizet na prestigiada Ópera de Paris, uma das mais prestigiadas do mundo. Excursionou por vários países, incluindo Rússia (outro país amante de Ópera), Alemanha e Bulgária, entre outros. A turnê teve início no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mesmo lugar onde anos antes D’Apparecida foi barrada de cantar por ser negra.

Ocupar espaços e buscar o sucesso foi a forma de revide de Maria D’Apparecida contra o racismo quase sempre. Após trabalhar como professora infantil por um tempo, ela começou a trabalhar como locutora de rádio nas horas vagas. Foi nesse ambiente em que começou a se interessar por música. Estudou canto lírico, mas acabou encontrando a barreira da cor na carreira que começava a construir. Acabou se agarrando a uma oportunidade de ir a Paris para se apresentar ao lado do compositor Waldemar Henrique em 1959. Não voltou mais. Fez carreira como mezzo soprano e gravou mais de 20 discos.

Inspirou poemas de Carlos Drummond de Andrade e foi musa do pintor surrealista Félix Labisse (1905-1982), com quem viveu um longo romance. Ele a retratou em pelo menos 15 telas, em uma cor azul muito expressiva. Maria acabou usando uma dessas telas como seu retrato oficial nos espetáculos. “Basta me pintar de azul. Todos vão ver que não sou branca”, dizia.

O sucesso a blindava das questões raciais até certo ponto, mas precisou lidar com a tentativa da cena cultural europeia e parte da imprensa de enquadrá-la como uma figura exótica. Em 1974, após um acidente de carro, acabou se afastando dos holofotes para se recuperar. Demoraria três anos para voltar, mas não conseguia mais cantar uma ópera inteira. Por isso, enveredou pela música popular, novamente com enorme sucesso. O álbum Maria d’Apparecida chante Baden Powell foi um dos maiores sucesso de sua carreira.

Seus últimos anos, porém, não foram fáceis. Sem se apresentar há mais de 15 anos, Maria D’Apparecida morreu solitária, em Paris, aos 92 anos, em 2017. Seu corpo demorou dias no Instituto de Medicina Legal da capital francesa e quase seria enterrado como indigente não fosse a mobilização de admiradores e conhecidos que acionaram a Embaixada Brasileira para um sepultamento digno, o que aconteceu apenas dois meses depois.

A HQ de Clara Chotil é, na verdade, uma jornada de busca por essa artista pioneira que o Brasil esqueceu. Mas é também a forma que a autora encontrou de se reconectar com sua própria história. Nascida na França de mãe brasileira, Clara se inspirou no livro de sua mãe Mazé Torquato Chotil, uma das responsáveis pelo resgate da história de Maria D’Apparecida.

O livro então alterna a história de Maria D’Apparecida com esses bastidores da autora nessa jornada pessoal em busca de sua história, da sua relação com o Brasil como forma de também compreender o que se passava com a artista em diferentes momentos. Com isso, as reflexões sobre exílio, solidão da velhice e questões de gênero ganham mais nuance. A HQ, dessa forma, se afasta do puro relato biográfico.

O desenho de Clara Chotil é rico de dinamismo e expressividade por conta de seu traço solto. Destaque também para as cores, que vão passeando pelos diferentes tons de azul ao longo da HQ. Chotil é uma grata surpresa para o cenário de quadrinhos do Brasil (é sua primeira HQ longa), com uma obra de muita personalidade estética. Ópera Negra é um poderoso documento que recupera a história fascinante de uma artista que merece ser (re)descoberta.

Ópera Negra
Clara Chotil
Veneta, 192 páginas, R$ 124,90, 2023

 

Por: Paulo Floro
Fonte: Revista O Grito

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