Um papo com Clarice Hoffman e Greg Vieira, autores de Pedra D’Água: “a obra de Clarice Lispector dá espaço e incentiva nossa potência criadora”
A HQ foge do formato convencional de biografias em quadrinhos e investiga a relação de Clarice com a cidade e como isso reverbera nos dias de hoje
O salão de festas do Hotel Central, na Boa Vista, recebeu no último dia 26 de maio, o esperado lançamento da HQ Pedra D’Água, uma criação de Clarice Hoffmann ilustrada pelo desenhista Greg Vieira e editada pelo selo HQ da Companhia Editora de Pernambuco (CEPE). A obra é uma homenagem à escritora Clarice Lispector, cuja infância e começo da adolescência foram vividos no Recife. O mesmo Hotel Central é cenário dessas vivências da escritora e aparece em cena importante do quadrinho.
Nascida na Ucrânia, Clarice chegou na cidade em 1925 com apenas cinco anos de idade, acompanhada pelo pai, mãe e duas irmãs, onde ficou até o ano de 1935, quando foi embora para o Rio de Janeiro.
Para construir o roteiro da HQ, Clarice Hoffmann com a colaboração de Clara Moreira, criou a personagem de Esther, uma pesquisadora que vem ao Recife em busca de traços da vida da escritora na cidade. A partir de uma pesquisa minuciosa de declarações feitas por Clarice Lispector a respeito do Recife em entrevistas, citações em crônicas e trechos de seus romances e contos, as autoras resgatam a memória dos anos de juventude de Clarice. Refazem os caminhos por onde ela passou, revisitam as casas onde morou, os colégios em que estudou, e desses passeios emergem as lembranças de uma cidade que não existe mais e algumas das experiências que no futuro iriam marcar a personalidade e a escrita de Clarice.
Para dar vida ao texto, o ilustrador Greg Vieira mostrou mais uma vez a sua habilidade em elaborar uma narrativa visual de extrema delicadeza que nos atrai não só pela beleza dos desenhos, mas também pelos elementos pelos quais vai emoldurando a história. As cores marcando as nuances entre o real e o poético, a fluidez na sucessão e ordenação dos quadros, o requinte da textura das pranchas, o silêncio e os movimentos que vamos percebendo no decorrer da leitura fazem de Pedra D’Água uma das mais encantadoras novelas gráficas lançadas no Brasil recentemente.
O Grito! conversou com Clarice Hoffmann e Greg Vieira sobre o processo de criação de Pedra D’Água e de que maneira o mergulho na obra de Clarice Lispector acionou nela uma força criadora potente e determinante nas escolhas feitas para chegar ao resultado desejado.
O Grito! – Você é jornalista, produtora cultural e pesquisadora. Como esses campos de atividade e conhecimento contribuem para essa nova caminhada como roteirista de HQ?
Clarice Hoffmann – Acho que as experiências profissionais que acumulei como jornalista, especialmente, na área do audiovisual, e como produtora cultural de projetos na linguagem das artes visuais, foram fundamentais para que eu pudesse criar roteiros para HQs. Mas, eu ainda não me vejo como roteirista de novelas gráficas, apesar de imaginar outras. Na verdade, o que me move é o desejo de compartilhar com outras pessoas algo que chamou minha atenção e, a partir disso, pensar sobre a melhor forma de comunicar a “história”. Acho que esse é o ponto de interseção da minha atuação como jornalista, como produtora cultural e como pesquisadora.
Greg, Você trabalhou com Clarice Hoffmann em O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. Em ambos os trabalhos há uma preocupação grande com a reconstituição, com a pesquisa documentada, com as referências (fotos, etc). Esse é também um pouco o seu modo de trabalhar, certo? Queria que você comentasse um pouco como foi novamente fazer essa parceria com Clarice e o que você de diferente nos dois trabalhos.
Greg: Em ambos os trabalhos há uma preocupação grande com a pesquisa, a reconstituição, esse é o modo de trabalhar de Clarice [Hoffmann]. Esse amor pelo documento, pelo papel, de trazer tudo isso na íntegra dentro do livro, é bem característica de Clarice também. Isso estava presente no Obscuro Fichário, sendo que lá os documentos estavam dentro das histórias e neste livro dedicamos um capítulo inteiro a eles. Inicialmente, eu estava escalado para desenhar apenas o quarto capítulo, com os documentos. O que há em comum nos dois trabalhos é que estou retratando o bairro da Boa Vista [Centro do Recife], que é o meu objeto de estudo há algum tempo.
A HQ O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, sua primeira experiência como roteirista foi resultado de um projeto de pesquisa seu o qual rendeu diversos produtos, entre eles as quatro histórias roteirizadas por você e Abel Alencar. Desta vez, em Pedra D’Água, o projeto já foi a própria HQ. Como você diferencia esses dois trabalhos em termos de processo de produção?
Hoffmann: A ideia de criar uma HQ baseada na pesquisa O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos surgiu desde os primeiros contatos com a documentação, especialmente, a partir das leituras dos relatórios de campana produzidos pelos agentes da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). Quando, finalmente, a novela gráfica começou a ser concebida eu já estava mergulhada naquele universo há mais de cinco anos. Para mim aquelas histórias, aquelas pessoas/personagens estavam totalmente presentes na minha vida e nos meus sonhos. Eu conversava com eles.
Mesmo assim, minha proposta era a de atuar na HQ apenas como pesquisadora e produtora executiva, foi um susto quando me vi escrevendo. Já Pedra D’Água surgiu a partir de um convite da CEPE. Outro susto: ser convidada para criar o roteiro de uma HQ sobre o Recife de Clarice Lispector. Bateu um medo danado, mas aceitei.
Eu já havia lido alguns contos de Clarice, mas naquele momento meu conhecimento era ínfimo. Então, todas as obras que eu li e as pesquisas que fiz posteriormente tinham como foco a criação da novela gráfica. Eu comecei sem saber exatamente o que seria contado, o oposto do que aconteceu na HQ do Obscuro, que só escrevi porque sabia exatamente o que contar.
E você, Greg, como foi o processo de produção de Pedra D’Água?
Greg: Em O Obscuro Fichário, a Cepe entrou em um segundo momento, então a gente estava bem solto, cada um fazendo os trabalhos em casa, sem ter que responder a ninguém, foi uma criação bem livre. Nesse segundo, Pedra D’Água, até por ter sido um convite da Cepe, teve uma participação maior do editor. Foi uma criação tripla, porque teve muito a participação de Diogo [Guedes, editor da Cepe].
O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos foi uma HQ mais jornalística e documental. Pedra D’Água está ancorada numa realidade documentada, porém com elementos ficcionais e com maior liberdade poética. Essa escolha decorreu do fato da história focar na infância da escritora no Recife e a necessidade de preencher lacunas de uma memória já fragmentada? Ou teve também relação com o desejo de atrair um maior número de leitores, sobretudo, os admiradores de Clarice?
Hoffmann: Em nenhum momento passou pela minha cabeça fazer Clarice criança no Recife. É um universo que não tenho familiaridade, o infantil, e fazer uma história destinada a adultos envolvendo uma criança, crianças, acho dificílimo. Não conseguiria. A personagem criada para a HQ, a pesquisadora Esther, nasceu de forma instintiva. A ideia me colocava numa posição confortável, em um universo mais próximo ao meu.
Essa escolha não foi feita para preencher lacunas ou atrair leitores. Na verdade, eu não penso nos leitores quando estou criando, roteirizando. Em Pedra D’Água, eu pensava em Clarice Lispector. Pensava no Recife que ela viveu e nas transformações pelas quais a cidade passou. Sobre ser ancorada numa realidade documentada, porém com elementos ficcionais e com maior liberdade poética, eu acho que a obra de Clarice dá espaço e incentiva nossa potência criadora.
A epígrafe da HQ foi escolhida exatamente por essa razão. Mas, é como você disse: são elementos ficcionais, não é exatamente uma ficção, pois há muita pesquisa por trás de cada cena. Elas estão ancoradas em muitos artigos, dissertações, teses e, claro, nas obras da própria Clarice.
A personagem da pesquisadora Esther não seria um autorretrato seu, mesmo que parcial?
Sim, parcialmente é um autorretrato, como também é um autorretrato de Clara Moreira que criou junto comigo o argumento da história. Esther também simboliza outras tantas mulheres que se debruçaram sobre a vida e a obra de Clarice Lispector. A criação dessa personagem, uma pesquisadora-escritora, também possibilitou assinalar as reflexões de Lispector sobre a linguagem, a palavra e sobre o ato de escrever.
Mas, em Pedra D’Água, eu parcialmente também sou a narradora que fala sobre Esther. E ela é uma personagem fundamental para aproximar a HQ de uma construção narrativa que Clarice utilizou em diversas obras. A existência de um narrador que fala na terceira pessoa do pretérito imperfeito sobre um personagem, que só vai ganhar voz, no presente e na primeira pessoa, quando se “descobre”.
E essa escolha para HQ também estava relacionada à possibilidade de adotar o mesmo arco narrativo que Clarice usava, cujo clímax foi nomeado pelo crítico literário Benedito Nunes como epifania.
Greg: A princípio Esther não tinha uma descrição pra ela, como ela era, se ela tinha alguma mania, algo assim. Eu tinha pedido essa descrição sobre ela para fazer o quarto dela, mas isso dependia da criação da personagem e até aquele momento eu ainda não tinha assumido os outros capítulos. Quando eu comecei a desenhar os capítulos anteriores, não tive tempo de trabalhar a personagem, então fui criando dentro dos esboços, na loucura mesmo. Tinha página que ela era uma pessoa mais velha, tinha hora que ela era mais nova, em um momento estava de cabelo comprido, em outro mais longo. Tinha traços muito gerais, muito dentro de um padrão.
Aí Clarice disse que não estava curtindo aqueles primeiros desenhos da personagem e sugeriu um rosto que ela achava massa para Esther. Ela chegou pra mim e disse “cê sabe a mãe do seu filho, Raul, Cláudia? Eu acho massa. Liguei pra ela e perguntei se ela topava posar para esta HQ. Ela nunca tinha feito nada parecido com isso, mas mesmo assim ela topou. Fizemos uns dois ensaios de fotos e a partir daí deu para desenvolver bem Esther.
No meio do processo eu também entendi que a história representa muito uma busca da própria Clarice Hoffmann e de que a HQ tinha também uma coisa muito pessoal pra ela.
A beleza dos desenhos de Greg é indiscutível e revela uma intensa interação e harmonia entre o texto escrito e o texto visual. As imagens são tão potentes quanto as palavras e, por vezes, até mais. Você poderia esmiuçar o processo de criação a quatro mãos (além da colaboração de Clara Moreira no argumento e roteiro)? Os desenhos se adequaram completamente ao roteiro inicial proposto ou ambos, roteiro e desenhos, foram nascendo do diálogo entre você e Greg?
O roteiro inicial de Pedra D’Água foi criado nos primeiros meses da pandemia. O convite da CEPE foi feito um mês antes do início do lockdown. Foi exatamente o tempo de propor o argumento, construído a partir de uma conversa entre mim e Clara, com a presença luxuosa de Abel Alencar, parceiro na HQ do Obscuro, e de reunir livros, comprados ou emprestados, para dar início à pesquisa e à criação do roteiro. Com a chegada da pandemia, tudo ficou incerto, inclusive, o projeto de produção da HQ.
Mas, naquela altura, eu já não conseguia parar. Aproveitei o tempo de isolamento para ler tudo que tinha reunido e escrever o primeiro capítulo da novela gráfica, enviei primeiro para Clara, que deu diversas sugestões, e depois para a CEPE. Então, a primeira versão do roteiro foi criada ao longo desse período. Eu não faço ideia de como outros roteiristas de HQ trabalham. Nunca li um roteiro de alguém da área. Mas, a construção que faço e que fiz para Pedra D’Água indica as cenas por páginas, por quadros e os textos.
Com raras exceções, não há indicação de ângulos, cores ou detalhamentos minuciosos da cena. Então, o trabalho desenvolvido com o Greg foi feito a partir do envio deste roteiro, da troca de ideias sobre a obra de Clarice e as cenas propostas e de um diálogo sobre quadros que imageticamente não estavam resolvidos. E aí, ele barbarizou. E, claro, que quando a HQ vai sendo desenhada o roteiro vai passando por uma espécie de segundo tratamento, que vem da construção narrativa criada a partir da imagem, daí a autoria.
Greg: Quando eu comecei esse trabalho eu ainda estava casado e morava na Boa Vista mesmo, mas lá pros lados da Agamenon [Magalhães, larga avenida no Centro do Recife]. Quando eu fui chamado para fazer os capítulos 1 ao 3 eu já tinha me separado e estava procurando casa pra morar e acabei vindo parar na Rua Sete de Setembro, bem no foco de onde estava a história da HQ, bem pertinho da Sinagoga.
Eu passei esses quase dois anos cruzando e visitando esses lugares quase todos os dias. Isso foi bem no início pós-pandemia e a cidade estava ainda um pouco vazia e eu visitava os locais quase todos os dias. Várias vezes dei o mergulho na maré até acertar o dia da maré cheia [N.E: há uma cena linda na HQ em que a personagem Esther se banha na maré cheia do Rio Capibaribe, uma cena transformadora e importante da história].
E para finalizar, não resta dúvidas que você foi fisgada pelo vírus da linguagem das HQs. Já existe algum novo projeto no campo da novela gráfica em preparação?
Sim. Existem algumas ideias. Quatro histórias que tenho vontade de contar. Todas no formato de novela gráfica.
HQ Pedra D’Água
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Por: Alexandre Figueirôa
Fonte: Revista O Grito