Memórias da bicicleta: Powerpaola propõe jornada afetiva na HQ Todas As Bicicletas Que Tive
Lançada simultaneamente em seis países, obra autobiográfica da equatoriana reforça sua proposta estética única nos quadrinhos
Bons contadores de histórias conseguem buscar as mais inusitadas perspectivas para levar envolver o leitor em uma narrativa. A quadrinista equatoriana Powerpaola é uma legítima representante desse tipo de artista, sempre tentando fugir do óbvio no modo como consegue falar de temas como relacionamento, solidão, amadurecimento e relação com a cidade. Em Todas As Bicicletas Que Tive, seu novo livro, ela aborda esses assuntos a partir de um ponto de partida bem comum e, talvez por isso mesmo, tão próximo de tanta gente: a nossa relação com as bicicletas.
Como os outros quadrinhos da autora, aqui ela novamente utiliza passagens de sua vida pessoal como base, mas dessa vez organiza suas memórias a partir das bicicletas que teve. Cada capítulo traz algum acontecimento vivenciado nas diferentes cidades em que já viveu a partir da relação afetiva estabelecida com sua bike naquele momento. A partir disso ela fala, por exemplo, das memórias de sua infância, quando usou sua primeira bicicleta para impressionar um grupo de garotos em Quito. Em outro momento, compartilha a memória de sua amiga em Cali, quando vivenciaram uma adolescência punk até se afastarem completamente anos depois.
O uso de objetos como fio condutor da narrativa é um recurso literário bastante conhecido, mas Powerpaola explora o fato da bicicleta funcionar também como uma extensão de nosso corpo, pois trata-se de um meio de locomoção que depende da energia que produzimos. “As bicicletas são máquinas impulsionadas por você mesma”, reflete a autora em determinado momento. “É você quem decide para onde quer se deslocar”.
O livro o tempo todo busca articular referências ligadas ao ato de pedalar, como a liberdade de se deslocar livremente e o equilíbrio necessário para pilotar, mas sem cair em maneirismos ou clichês. Ao contrário, Powerpaola faz aqui uma escrita muito bem construída, quase meticulosa. Ela pouco a pouco vai adicionando uma série de elementos que vão ganhando mais e mais tração ao longo do livro, como um perigo iminente ligado à figura de um jacaré e o mistério que se desenvolve ao redor de um buraco que ela encontra no meio da rua. “Quando vejo um buraco escuro, não posso evitar olhar pra dentro dele”, diz.
Depois do seu ótimo Qp, em que abordava de maneira franca um relacionamento longo ao lado de seu companheiro e do sucesso Vírus Tropical, seu romance de formação, neste novo trabalho temos uma autora ainda mais ciente de sua arte tão peculiar. Powerpaola segue ainda mais segura em seu projeto estético único, um estilo que desafia convenções do realismo ao mesmo tempo em que proporciona uma imersão na leitura por conta de sua arte incrivelmente detalhada. Todas As Bicicletas Que Tive destaca-se pela profundidade alcançada no uso dos diferentes tons de cinza e no impacto causado pelo uso pontual das cores chamativas, como o amarelo e o vermelho.
As paisagens das cidades seguem com bastante destaque no trabalho da autora, que é uma conhecida nômade com passagens por diversos locais ao longo da vida. O livro vai pontuando memórias em cidades como Paris, Cali, Medellín, Quito, Buenos Aires e Bogotá, onde as bicicletas aparecem como objetos-narrativos, mas também como personagens. Ao chamá-las pelo nome, as bikes ganham ainda mais personalidade: “A Chinesa”, “Chopper”, “Aurorita”, etc.
A HQ é parte de um empreendimento editorial latino pouco visto no mundo dos quadrinhos. Foi lançada simultaneamente em seis países, por cinco editoras diferentes: El Fakir (Equador), La Silueta (Colômbia), Lote 42 (Brasil), Musaraña (Argentina) e Sexto Piso (México e Espanha).
É um livro que avança bastante na proposta artística de Powerpaola, o que é uma grata surpresa para os fãs que a acompanham há muito tempo. Mas é também um livro que reforça o quanto a artista é singular dentro do cenário internacional de quadrinhos hoje, um reforço de uma autoralidade muito presente, reconhecível.
Por: Paulo Floro
Fonte: Revista O Grito